Por que no Brasil prevalece a dualidade entre a moral e a política, o oficial e o oficioso, o legal e o real?
No Brasil, as leis não são compreendidas como garantidoras de justiça e igualdade, mas geradoras de novas formas de injustiça. O “jeitinho brasileiro” é uma maneira de descumprir a lei, que é vista como violenta e injusta. Penso que é mais isso o que acontece, e menos a consideração de que nós, brasileiros, temos uma tradição “individualista”, que seria pouco afeita à preocupação com o bem comum. Quanto à moral (privada) e a política (espaço público), aí, sim, há uma grande confusão, porque a suspeição com respeito a condutas desviantes se exerce como substituição da luta política pela gestão do judiciário. A política acaba se fazendo em tribunais. Todas as vezes em que o poder dos juízes aumenta isso se faz à expensas da força dos parlamentos. Essa inversão entre os poderes políticos, a politização excessiva da justiça ou a sua dissimulada ou aberta partidarização enfraquece a democracia.
Como [você] vê a sociedade atual, na qual os que possuem conhecimento têm a prerrogativa de mandar e comandar os demais em todas as esferas da vida social?
A sociedade do conhecimento produz essa perversão que se manifesta na idéia de competência. São critérios burocráticos, portanto perversos, que designam competências. Um determinado indivíduo não se encontra em um determinado cargo ou função porque é competente, mas o fato de se encontrar no cargo ou função lhe confere competência.É só pensar na economia, que tomou o lugar da política. O discurso competente funciona como o dogma da infalibilidade do papa, como se a economia fosse um conjunto de fenômenos objetivos. A noção grega de competência, aquela de que trata Aristóteles em sua política, ensina que a destreza ou competência de um artesão na fabricação de selas de cavalo não é avaliada por outro especialista em selas, mas pelo usuário. O conhecimento não está alienado em discursos competentes.
*Filósofa e professora da USP, em entrevista ao Jornalista Robinson Borges do jornal Valor Econômico, quando do lançamento de seu livro “Discretas Esperanças”, na edição relativa aos dias 24,25 e 26 de novembro de 2006.