O amigo Fábio Mendes fez um comentário sobre a postagem anterior acerca do descolamento que gostaria de transformar em postagem e aproveitar para prolongar a discussão.
Diz o Fábio o seguinte:
“(…) gostaria de colocar duas opiniões que ouvi recentemente sobre o ‘decoupling’ e que acho relevantes.
A primeira é a do economista José Roberto Mendonça de Barros, que, em uma entrevista para o jornal Valor Econômico da edição de 28/01/2008, sustentou que o ‘decoupling’ se refere à economia real, e não aos mercados financeiros. Reproduzo a parte da entrevista na qual ele introduz tal opinião: ‘Se isso se confirmar [eficácia nas medidas adotadas pelas autoridades monetárias], acaba ainda por prevalecer uma certa questão do ‘decoupling’. Um parêntese: muita gente está dizendo que o descolamento morreu porque as bolsas do mundo inteiro caíram. É um argumento equivocado. A idéia do descolamento se refere à economia real. O mercado financeiro está integrado no mundo inteiro. É impossível ocorrer uma queda forte numa bolsa importante sem que isso aconteça em outras praças. O teste de verdade é o que vai ocorrer com o ciclo econômico.’
Na minha opinião, porém, se os mercados financeiros antecipam o que ocorre na economia real, obviamente teriam também que se descolar em algum momento: não há lógica em uma situação em que os lucros das empresas estão aumentando e o preço de suas ações caindo.
A outra opinião que ouvi, é a do economista Ricardo Amorim, em uma intervenção no programa Manhattan Conecttion do último domingo (27/01/2008). Segundo Amorim, haverá sim o ‘decoupling’ pois os mercados emergentes continuarão a crescer mesmo com a provável recessão na economia americana, tendo em vista que as principais economias emergentes – China e Índia – já estavam, antes da crise, com níveis de crescimento econômico muito elevados, e, portanto, estavam estudando medidas para reduzir um pouco o nível de expansão – provavelmente medidas de política monetária para reduzir o consumo interno. A crise nos EUA, portanto, permite que tal ajuste seja feito pelo setor externo dessas economias, fazendo com que não sejam necessárias medidas para conter a demanda interna nessas economias. Assim, sem qualquer alteração nos regimes cambiais e monetários da China e da Índia, o crescimento dessas economias cairia para algo em torno de 8% ao ano, crescimento este, de economias grandes e importantes, porém, sustentaria os demais mercados emergentes, inclusive o Brasil. Estaria, portanto, configurado o ‘decoupling’.
Bom, fica a contribuição aí para o debate.”
Aqui vou eu:
Inicialmente, queria agradecer os elogios ao livro e ao bolg.
Vamos começar pelo começo: há autonomia entre os problemas dos países. Não é certo que uma economia indo mal todas as outras assim seguirão. Por outro lado, há um efeito chamado de “transbordamento” (termo que eu tenho visto pouco nos jornais), que traduz o crescimento gerado em um país decorrente daquele gerado em outro. Talvez ele aparecesse mais antes porque as economias eram mais independentes. O problema é que hoje é diferente. Muita coisa está sendo conectada por algo chamado globalização. As empresas são transnacionais e, se você verificar o que aconteceu com os lançamentos de ações no Brasil, mais de 70% do capital delas foram parar nas mãos de estrangeiros.
Uma outra evidência dessa conexão é o “outsourcing”, que pode ser traduzido como uma terceirização de mão de obra para outro país. As centrais de atendimento americanas estão na Índia. Imagine uma redução na demanda dos EUA. Os indianos que informam o saldo do cartão estarão com o emprego ameaçado (aconselho uma lida no livro “O mundo é plano”).
Muito bem, então, não há descolamento. Estas economias estão cada vez mais unidas.
Essa postagem não se encerra aqui. Prometo que vou continuar essa discussão e detalhar um pouco mais os pontos levantados pelos dois especialistas.
Prezado Beto Veiga,
Esse tema [decoupling] realmente é muito interessante, pois, acredito, seria algo inusitado acontecendo no sistema econômico: o início de uma relativização do papel dos EUA e de sua economia no mundo.
Mas vamos lá. Continuando o debate. Eu acredito que exista, talvez, uma questão de precisão conceitual separando a opinião dos economistas que estão afirmando que o descolamento se verificará, e os que, Beto Veiga incluso, sustentam que isso não existe.
Realmente é irrefutável a sua argumentação de que o processo de globalização torna as economias mais interdependentes, e, de fato, a questão do outsourcing é emblemática: se quem paga pelo serviço indiano é o americano, e se o americano fica mais pobre, então o indiano irá sofrer também.
Voltando a questão da precisão conceitual que estaria separando as opiniões. Acho que precisamos colocar a questão do decoupling em níveis de gradação. Um completo descolamento das economias emergentes de eventuais problemas na economia americana realmente é algo absurdo, como percebemos nos seus posts.Mas, hoje, elas parecem sofrer bem menos do que há 10 anos atrás.
Se compararmos o impacto que uma recessão nos EUA provocaria nas economias periféricas – a maioria delas com problemas de desequilíbrios cambiais – na década passada, com o comportamento dessas economias, hoje, a modificação é dramática. Há dez anos atrás, um soluço nos EUA, provocava corrida dos investidores dos mercados emergentes, dólar disparando, taxas de juros na estratosfera, pedidos de empréstimos ao FMI, etc, etc, etc. Hoje, a situação é completamente outra. Desde então, os países periféricos, Brasil incluso, fizeram seus deveres de casa [ajustes fiscais] e adotaram regimes cambiais flutuantes. Some-se a isso a elevação dos preços das commodities que inundou essas economias de dólares, acabando com os riscos de insolvência externa.
Resultado disso, por exemplo, no Brasil, vemos as principais autoridades e bancos prevendo crescimento de 4,5% da economia brasileira, apesar de os EUA desacelerem de 4,5 para 1,5% na melhor das hipóteses. Então, só aí já vemos que existe uma modificação, com economias periféricas sofrendo bem menos com soluços do “V12” (o termo é ótimo).
Então, será que é absurdo afirmar que, hoje, apesar de as economias estarem mais integradas, problemas na economia americana geram bem menos problemas nos demais países que há 10 anos atrás? E esse processo pode ser entendido como “decoupling”, ou não?
O que eu entendi do seu primeiro post sobre descolamento, quando vc fala que o efeito seria similar ao das modificações nas taxas de juros, é que os efeitos da desaceleração nos EUA nas demais economias seria no médio prazo, assim como o efeito da política monetária. Mas, olha só: há dez anos atrás, somente sinais de soluços nos EUA provocava problemas nos mercados financeiros dos países periféricos, e, isso acabava se refletindo na economia real muito rapidamente. Então, parece que temos uma mudança aí também.
Por outro lado, a questão da Ásia. Há 10 anos atrás a China não era esse colosso econômico que é hoje, a Índia também não, e a economia russa estava fazendo “default” na dívida externa e o PIB despencando. Hoje a situação é completamente diferente. Essas três economias estão crescendo todas acima de 8% ano, a China 11%, e, até agora, não vi previsão de economistas falando em recessão nesses mercados, pois as economias em que há sinais de recessão são : Japão, Inglaterra, Espanha, Itália, Cingapura e HongKong. Enquanto que China, Rússia, Brasil e Índia não existem nem sinais e nem previsões de desaceleração.
Resumindo: “decoupling” completo é algo realmente meio absurdo, entretanto, parece que, hoje, as economias periféricas sofrem bem menos com os soluços da economia americana.
Grande abraço.
Fábio Mendes