Reproduzo o texto do filósofo André Comte-Sponville, retirado de sua obra “A felicidade desesperadamente” (Ed. Martins Fontes).
Estamos no fim de outubro: a felicidade é diferida por dois meses. Por sorte, as crianças esquecem de vez em quando que este lhes falta; então acontece-lhes, às vezes serem felizes por inadivertência, mas, assim que pensam no brinquedo, já não é possível: ele lhes faz muita falta! A criança se diz: “como eu seria feliz se o tivesse ou quando o tiver!” Ora, ela não o tem e, portanto, não é feliz. A criança está separada da felicidade por sua espera.
Chega a manhã de Natal…Quando tudo ocorre bem, quando os pais puderam comprar o presente, quando o pai consegue montá-lo, quando o manual é inteligível, quando se lembraram de comprar pilhas, etc., a manhã de Natal faz parte dos momentos mais fáceis de viver. Se bem que…Bom, digamos que há coisas piores e que logo vamos nos dar conta disso. É que, depois da manhã de Natal, temos, inevitavelmente, a tarde de Natal. E aí algo começa obscuramente a se corromper, a se anuviar, a se deteriorar…A criança fica mais nervosa, rabugenta, contrariada, como que descontente. Os pais, por sua vez, se irritam: “O que foi? Não está contente? Não era o que você queria?” A criança responde: “Sim, é exatamente o que eu queria…” E então? Como não leu Platão, a criança na verdade não sabe responder. Mas, se tivesse lido, diria aos pais: “O que estou compreendendo, sabe, é que é muito fácil desejar o brinquedo que não tenho, o que me falta, e pensar que o eu seria feliz se o tivesse…Mas que é muito mais difícil desejar o brinquedo que eu tenho, o que já não me falta! No fundo, é o que Platão explica: o desejo é falta. O brinquedo que você me deu já não me faz falta, pois eu o tenho, e, portanto eu já não o desejo…Como eu poderia ser feliz? Não tenho o que desejo, mas simplesmente o que desejava…” Como a criança não leu Platão e como é boazinha, ela se contenta com brincar como pode; para agradar os pais, finge estar feliz…A tarde passa, depois o jantar…As crianças vão dormir e, quando você vai lhes fazer os carinhos costumeiros, o menino pergunta: “quando é o Natal, papai?” O pai fica meio desarmado: “Ué, que história é essa…Foi hoje, o Natal!” “Eu sei”, responde o garoto, “estou falando do Natal que vem…” E começa tudo outra vez…